quinta-feira, 12 de março de 2009

Helvética - Um tipo vulgar

Apresento-vos mais um trabalho que fiz para a revista Actual, suplemento do Expresso. Desta vez é um plano da revista sobre os 50 anos da fonte Helvética.
Onde criei uma perspectiva com profundidade em que as várias letras se vão aproximando para transmitir uma ideia de movimento que vai desde o inicio da sua concepção até aos dias de hoje.



Deixo-vos aqui o texto que foi publicado com estas páginas da autoria de Luís M. Faria, Jornalista do Expresso.

O tipo de letra mais usado e mais visto, aquele que nos facilita a vida com indicações de trânsito, por exemplo, não tem nada de mais. Essa é a razão do seu sucesso 50 anos depois da sua criação
O que é que faz com que um tipo de letra (ou, simplesmente, um tipo, na gíria dos gráficos profissionais) seja mais usado do que outros? Pode haver vários factores. Veja-se o caso do Helvética, um dos tipos mais populares de sempre. À primeira vista, não se destaca por qualquer sinal particular. O Helvética não é obviamente único. Não é bonito, não é excêntrico, não tem nada de excepcional. É uma letra esguia e funcional, que, exactamente pela natureza discreta, serve para quase tudo. Juntando factores de marketing, moda e razões práticas - por exemplo, o facto de uma marca informática a haver adoptado - seria inevitável tornar-se popular.
Existem milhares de tipos de letras. Todos os dias observamos dezenas. Na imprensa, por exemplo, são elemento essencial de identidade. Quantos leitores do «Público» sabem que, até há meses, este diário fazia os títulos em Bodoni, um tipo de letra do século XVIII? Eventuais saudades da imagem do anterior jornal poderão ter a ver com a letra. Não que a nova tenha algo de errado, mas é diferente da anterior. Os hábitos de convivência não se transferem de um momento para o outro. Por igual motivo, estranharíamos se os logótipos da Fnac, da Evian, da Sanyo, da BMW, da Toyota ou da Lufthansa mudassem subitamente de aspecto. O tipo em que são feitos constitui a opção corporativa por excelência. É aquele de que falámos ao início, e acaba de fazer meio século.
Raramente se comemora o aniversário de um tipo de letra, ainda por cima com um livro, um filme e uma exposição. O livro intitula-se Helvetica: Homage to a Typeface, e é escrito pelo designer Lars Muller. O filme, Helvética: A Documentary Film, tem realização de Gary Hustwitt, que antes fez documentários sobre música popular. Quanto à exposição, «50 Years of Helvetica», acaba de abrir no Museum of Modern Art (MoMA) de Nova Iorque, venerável instituição, que por acaso usa outra fonte no seu logótipo - embora os menus do restaurante sejam em Helvética.
Desde logótipos a sinais de trânsito, passando por objectos dos mais variados géneros, o Helvética encontra-se hoje por todo o lado. Muller chama-lhe «o perfume da cidade». Para o designer-tipógrafo Mário Feliciano, que desenhou o actual tipo deste jornal, «seria difícil imaginar o Mundo sem ele». Referindo a divisão básica entre tipos com serifa e sem serifa (as serifas são aqueles pequenos remates não-estruturais no fim das letras), diz que o Times New Roman é o arquétipo dos primeiros, e o Helvética dos segundos.
Os sem-serifa apareceram no final do século XIX, na alba da modernidade. Nessa altura eram chamados Groteske, pela estranheza que causavam ao público. Geralmente utilizados em tamanho grande e sem muito contraste, destinavam-se a «posters» e a outras utilizações curtas, não a texto corrido. Já no início do século XX, uma nova família de sem-serifas, com círculos perfeitos e letras quadradas, reflectia o espírito da era industrial.
As décadas seguintes viram a criação de alguns tipos extraordinários, tanto modernos como antigos. Por vezes, o mesmo designer trabalhou nos dois registos. Assim aconteceu com Eric Gill. Esse génio inglês criou o Gill Sans, tipo ainda hoje visível no metropolitano londrino (e irreversivelmente associado à cidade), mas também o Joanna, um tipo quase arcaico, que continua a ser usado em texto.
Ainda mais relevante é a diferença entre o Gill Sans e, por exemplo, o Futura, um tipo surgido quase na mesma altura e destinado a texto. Enquanto aquele segue proporções romanas, este assume-se inflexivelmente moderno. «A fonte do nosso tempo», como dizia o seu autor, o alemão Paul Renner. Idêntica afirmação, curiosamente, à que muitas vezes se faria sobre o Helvética, com o qual tem afinidades.
Em 1957, o design suíço encontrava-se numa fase de renovação. Uma empresa importante, a Fundição Haas, decidiu encomendar uma versão de um tipo então muito em voga, o Akzidenz Grotesk. O objectivo era uma letra mais redonda, mais suave, capaz de fornecer uma maior variedade de pesos (negro, fino, itálico, etc.), e, portanto, susceptível de utilização mais versátil.
O designer era um ex-empregado de uma empresa, a Max Miedinger, que havia passado a trabalhador por conta própria e tinha na altura 46 anos. O produto do seu esforço foi baptizado de Neue Haas Grotesk. Anos mais tarde, a companhia-mãe da Haas decidiu comercializá-lo na Alemanha e rebaptizou-o de Helvética, uma variação sobre o nome latino da Suíça. O objectivo era associá-lo ao movimento tipográfico suíço. E uma estrela nasceu.
O generoso branco no corpo das letras compensado pelos ascendentes e descendentes relativamente curtos são duas das características que tornam o Helvética especialmente limpo e legível. Depois, há as letras individuais. Para a designer Katherine McCoy, «o 'a' minúsculo do Helvética médium é a mais bela forma em duas dimensões jamais desenhada. As suas curvas sensuais são compensadas por pontos de tensão crispada. A sua adorável barriga faz-me pensar em Mozart».
Nas três décadas seguintes, o Helvética conheceu uma enorme divulgação. Com a sua aparência neutra, era ideal para a época. Ajudado por uma promoção agressiva, e mais tarde pelo computador - foi uma das quatro fontes originais fornecidas em 1984 com o programa PostScript, que lançou o «desktop publishing» -, não teve concorrência. Até ao dia em que a empresa de Bill Gates resolveu produzir uma versão quase idêntica, vendendo-a como original. A essa derivação chamou Arial. Para um leigo, é virtualmente indistinguível do Helvética. Perceber a diferença exige reparar em detalhes quase invisíveis. Por exemplo, a pequena volta no fim do «a» minúsculo, ou o modo como uma das hastes se torna mais fina no «n», ou o topo direito nos «i» e nos «t».



Tendo o Arial proporções e peso idênticos ao Helvética, viria com o tempo a ultrapassá-lo, pelos mesmos motivos porque o Explorer ultrapassou o Netscape. Convém notar quão frágil é a protecção legal da tipografia. Defende-se mais um nome que um design, e mesmo a protecção que existe requer actualizações regulares.
Ao contrário do Netscape, porém, o Helvética não desapareceu. Se perdeu a guerra nos computadores, mantém-se à frente nos espaços externos. Basta ver a quantidade de «placards» que o usam. Quem diz «placards» diz o resto: brochuras, matrículas, letreiros, sinais de trânsito, maços de tabaco, revistas, títulos de filmes (Star Wars), «t-shirts», cartazes, objectos...
Exceptuando as grandes massas de texto, para as quais não é adequado, o Helvética tem utilização praticamente ilimitada. Aí mesmo reside o problema. A ubiquidade gera ressentimento, até por implicar falta de imaginação. Todo um momento anti-Helvética se formou, ilustrado folcloricamente pelas «t-shirts» que dizem «I Hate Helvetica» ou «Helvetica Thin - Just Say No».
O designer australiano Stephen Banham, que escreveu um livro inteiro contra a letra (Grand), acha-a aborrecida e conformista. Lamenta que em certas cidades ela se encontre por todo o lado. Assim acontece onde vive, Melbourne. Só isso já o levaria a contestar, mesmo que não existissem outros motivos.
Na base das críticas, que também surgem em manuais de tipografia, há argumentos diversos. Além da preguiça mental, acusa-se o Helvética de inadequação ao computador, ligação umbilical à sociedade de consumo, e mesmo a intenção «fascista», que lhe estaria subjacente, de uniformizar e conformar a sociedade. Afinal, o Helvética é suíço... Como se o design, e, em particular o design comercial, pudesse aspirar a mais do que vencer a concorrência.
O Helvética conseguiu isso durante muito tempo. Em virtude da popularidade, acabou por se reproduzir em ritmo acelerado, com resultados nem sempre positivos. Ao Neue Helvetica (1983), por exemplo, apontou-se falta de subtileza.
Mário Feliciano diz que o que hoje se utiliza fica aquém do original. «A versão em metal era muito bonita, muito bem feita. Cada tamanho era esculpido»; a versão digital «é uma adaptação», afirma. E há outros problemas. Sucessivas versões geram questões de substituição por vezes delicadas. O computador obriga a cada vez maiores exigências. E a própria neutralidade da letra, como a do seu país, irrita muita gente.
Pode acontecer que o Helvética, ao fim de 50 anos no topo, acabe por se revelar pouco prático. Se acontecer, não será um drama. Só uma pequena parte das letras resistem à infância. Conseguir atingir os 50 anos é excepcional. Chegar lá com a saúde do Helvética requer não apenas boa genética como um ambiente favorável. A criação de Miedinger teve tudo isso em abundância. Como a Suíça e a própria tipografia, há muito que se habituou a ser subestimado. E não deixou de aproveitar.

1 comentário:

  1. porque insistir em escrever Helvética e não Helvetica... Não faz sentido.

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